domingo, 1 de abril de 2012

Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas Doença Celíaca

Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas Doença Celíaca


1 Introdução
A doença celíaca (DC) é autoimune, sendo causada pela intolerância permanente ao glúten, principal fração proteica presente no trigo, no centeio, na cevada e na aveia, e se expressa por enteropatia mediada por linfócitos T em indivíduos geneticamente predispostos.
Estudos de prevalência da DC têm demonstrado que ela é mais frequente do que se pensava, mas continua sendo subestimada. A falta de informação sobre a DC e a dificuldade para o diagnóstico prejudicam 
a adesão ao tratamento e limitam as possibilidades de melhora do quadro clínico. Outra particularidade é o fato de a DC predominar em indivíduos faiodérmicos, embora existam relatos de sua ocorrência em indivíduos 
melanodérmicos. Pesquisas revelam que a doença atinge pessoas de todas as idades, mas compromete principalmente crianças de 6 meses a 5 anos de idade. Foi também observada frequência maior em pacientes do sexo feminino, na proporção de duas mulheres para cada homem. O caráter hereditário da doença torna imprescindível que parentes em primeiro grau de celíacos se submetam ao teste para sua detecção.
Três formas de apresentação clínica da DC são reconhecidas: clássica ou típica, não clássica ou atípica e assintomática ou silenciosa.

• Forma clássica ou típica
Caracteriza-se pela presença de diarreia crônica, em geral acompanhada de distensão abdominal e perda de peso. Os pacientes também podem apresentar diminuição do tecido celular subcutâneo, atrofia 
da musculatura glútea, falta de apetite, alteração de humor (irritabilidade ou apatia), vômitos e anemia. Esta forma clínica pode ter evolução grave, conhecida como crise celíaca, que ocorre quando há retardo no 
diagnóstico e na instituição de tratamento adequado, particularmente entre o primeiro e o segundo anos de vida, sendo frequentemente desencadeada por infecção. Esta complicação potencialmente fatal se caracteriza 
pela presença de diarreia com desidratação hipotônica grave, distensão abdominal por hipopotassemia e desnutrição grave, além de outras manifestações, como hemorragia e tetania.

• Forma não clássica ou atípica
Caracteriza-se por quadro mono ou oligossintomático, em que as manifestações digestivas estão 
ausentes ou, quando presentes, ocupam um segundo plano. Os pacientes podem apresentar manifestações isoladas, como, por exemplo, baixa estatura, anemia por deficiência de ferro refratária à reposição de ferro 
por via oral, anemia por deficiência de folato e vitamina B12
, osteoporose, hipoplasia do esmalte dentário, artralgias ou artrites, constipação intestinal refratária ao tratamento, atraso puberal, irregularidade do ciclo menstrual, esterilidade, abortos de repetição, ataxia, epilepsia (isolada ou associada à calcificação cerebral), neuropatia periférica, miopatia, manifestações psiquiátricas (depressão, autismo, esquizofrenia), úlcera 
aftosa recorrente, elevação das enzimas hepáticas sem causa aparente, adinamia, perda de peso sem causa aparente, edema de surgimento abrupto após infecção ou cirurgia e dispepsia não ulcerosa. 

• Forma assintomática ou silenciosa
Caracteriza-se por alterações sorológicas e histológicas da mucosa do intestino delgado compatíveis com DC, na ausência de manifestações clínicas. Esta situação pode ser comprovada especialmente entre grupos de risco para a DC, como, por exemplo, parentes em primeiro grau de pacientes celíacos, e vem sendo reconhecida com maior frequência nas últimas duas décadas, após o desenvolvimento dos marcadores sorológicos para a doença.
A dermatite herpetiforme, considerada DC da pele, que se apresenta com lesões cutâneas do tipo bolhoso e intensamente pruriginoso, se relaciona também com intolerância permanente ao glúten. 


  Classificação EstatístICa IntErnaCIonal dE doEnças E problEmas rElaCIonados à  saúdE (CId-10)


• K90.0 Doença celíaca


3 CrItérIos dE InClusão


Serão incluídos neste protocolo os pacientes que apresentarem as condições abaixo:
• sintomas ou sinais das formas clássica e não clássica de DC;
• indivíduos de risco, entre os quais a prevalência de DC é esperada como consideravelmente maior do
que  a da população geral: parentes em primeiro grau (pais e irmãos) de pacientes com DC18-21;
• indivíduos com anemia por deficiência de ferro refratária à reposição de ferro oral, com redução da densidade  mineral óssea, com atraso puberal ou baixa estatura sem causa aparente; 
• indivíduos com doenças autoimunes, como diabetes melito insulinodependente, tireoidite autoimune,deficiência seletiva de IgA29, Síndrome de Sjögren, colestase autoimune, miocardite autoimune; 
• indivíduos com síndromes de Down, com síndrome de Turner ou de Williams;
• indivíduos com infertilidade, com história de aborto espontâneo ou com dermatite herpetiforme. 
4 dIagnóstICo


Para  o diagnóstico definitivo da DC é imprescindível a realização de endoscopia digestiva alta com biópsia de intestino delgado, devendo-se obter no mínimo 4 fragmentos da porção mais distal do duodeno (pelo 
menos da segunda ou terceira porção) para exame histopatológico do material biopsiado, considerado o padrãoouro no diagnóstico da doença. 
Os marcadores sorológicos são úteis para identificar os indivíduos que deverão submeter-se à biópsia de intestino delgado, especialmente aqueles com ausência de sintomas gastrointestinais, com doenças associadas 
à DC e com parentes em primeiro grau assintomáticos. Estes marcadores também são úteis para acompanhar o tratamento do paciente celíaco, como, por exemplo, na detecção de transgressão à dieta. Os 3 principais 
testes sorológicos para detecção da intolerância ao glúten incluem as dosagens de anticorpos antigliadina, antiendomísio e antitransglutaminase. 
Com relação ao anticorpo antigliadina, descrito por Haeney e cols. em 1978 e determinado pela técnica de ELISA, deve-se considerar que a especificidade do anticorpo da classe IgA (71%-97% nos adultos e 92%-97% 
nas crianças) é maior do que a da classe IgG (50%) e que a sensibilidade é extremamente variável em ambas as classes. 
O anticorpo antiendomísio da classe IgA, descrito por Chorzelski e cols. em 1984, baseia-se na técnica de imunofluorescência indireta. Apresenta alta sensibilidade (entre 88%-100% nas crianças e entre 87%-89% 
nos adultos), sendo baixa em crianças com menos de 2 anos, e também alta especificidade (91%-100% nas crianças e 99% nos adultos). No entanto, é um teste que depende da experiência do examinador, tem menor 
custo/benefício e é mais trabalhoso do que a técnica de ELISA40.
Com relação ao anticorpo antitransglutaminase da classe IgA, descrito por Dieterich e cols. em 1997, e obtido pelo método de ELISA, deve-se observar que o teste apresenta altas sensibilidade (92%-100% em crianças e adultos) e especificidade (91%-100%). 
Em resumo, para detecção da intolerância ao glúten, há superioridade do anticorpo antiendomísio e do anticorpo antitransglutaminase, ambos da classe IgA, principalmente o anticorpo antitransglutaminase 
recombinante humana IgA, em relação ao antigliadina. Considerando a maior facilidade de dosagem do anticorpo antitransglutaminase, aliada a elevadas sensibilidade e especificidade na população pediátrica e adulta, este é o 
teste sorológico de escolha para avaliação inicial dos indivíduos com suspeita de intolerância ao glúten. 
Deve-se destacar que a deficiência de imunoglobulina A é responsável por resultados falso-negativos dos testes sorológicos antiendomísio e antitransglutaminase da classe IgA. Por este motivo, indicam-se como testes 
204Doença Celíaca


 Doença Celíaca
diagnósticos iniciais as dosagens séricas simultâneas do anticorpo antitransglutaminase da classe IgA e da imunoglobulina A. Convém enfatizar que, até o momento, os marcadores sorológicos para DC não substituem o exame histopatológico do intestino delgado, que continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico da doença. Os testes sorológicos serão considerados testes diagnósticos iniciais, por identificarem os indivíduos a serem encaminhados à biópsia duodenal. No entanto, é de ressaltar 
que há indicação de biópsia para indivíduos com sintomas ou sinais de DC, mas com marcadores sorológicos negativos, principalmente se integrarem grupo de risco.
Em relação à biópsia de intestino delgado, para que a interpretação histológica do fragmento seja fidedigna, é fundamental o intercâmbio entre o médico endoscopista e o médico responsável 
direto pelo doente – de preferência médico experiente em Gastroenterologia Pediátrica ou Clínica – com o médico patologista. A orientação do fragmento de biópsia pelo endoscopista e a inclusão 
correta do material em parafina pelo histotecnologista são de extrema importância para a avaliação anatomopatológica dos fragmentos biopsiados. 
O  papel do endoscopista no diagnóstico da doença pela biópsia de intestino delgado é fundamental, e a execução da técnica deve ser impecável. Os fragmentos para biópsia poderão ser retirados da segunda ou terceira porção do duodeno ou das porções ainda mais distais do intestino 
delgado que o endoscópio consiga atingir. Deve haver cuidado com a manipulação dos fragmentos; por se tratar de amostra muito delicada, facilmente está sujeita a se desintegrar, impossibilitando a 
análise histológica. Além disso, é imprescindível que cada fragmento seja colocado, separadamente, em papel de filtro, com o correto posicionamento (num total de 4 fragmentos em seus respectivos papéis de filtro) dentro de um frasco com formol. 
A lesão clássica da DC consiste em mucosa plana ou quase plana, com criptas alongadas e aumento de mitoses, epitélio superficial cuboide, com vacuolizações, borda estriada borrada, aumento 
do número de linfócitos intraepiteliais e lâmina própria com denso infiltrado de linfócitos e plasmócitos. Marsh, em 1992, demonstrou haver uma sequência da progressão da lesão da mucosa do intestino 
delgado na DC: 
• estágio 0 (padrão pré-infiltrativo) – com fragmento sem alterações histológicas e, portanto, considerado normal; 
• estágio I (padrão infiltrativo) – a arquitetura da mucosa apresenta-se normal, com aumento do infiltrado dos linfócitos intraepiteliais (LIE); 
• estágio II (lesão hiperplásica) – caracterizado por alargamento das criptas e aumento donúmero de LIEs; 
• estágio  III (padrão destrutivo) – há presença de atrofia vilositária, hiperplasia críptica eaumento do número de LIEs; 
• estágio  IV (padrão hipoplásico) – caracterizado por atrofia total com hipoplasia críptica,considerada forma possivelmente irreversível. 
Nos últimos anos, alguns autores têm tentado aperfeiçoar este critério, tanto na valorização do grau de atrofia vilositária, quanto na padronização do número de LIEs consideradas aumentadas. 
A alteração da mucosa intestinal do tipo Marsh III, que se caracteriza pela presença de atrofia vilositária, demonstra evidência de associação com a DC43, embora não seja lesão patognomônica da doença. A primeira padronização do diagnóstico da DC foi proposta pela Sociedade Europeia 
de Gastroenterologia Pediátrica em 1969. Este critério recomendava realizar a primeira biópsia diagnóstica e, a seguir, 2 anos de dieta sem glúten e biópsia de controle; caso esta fosse normal, seria necessária a instituição de dieta com glúten por 3 meses ou até o aparecimento de sintomas, 
e a realização da terceira biópsia que, se mostrasse alterações compatíveis com DC, comprovaria definitivamente a doença. Caso não houvesse alteração nesta última biópsia, o paciente deveria permanecer em observação por vários anos, pois poderia tratar-se de erro diagnóstico ou retardo na 
resposta histológica. 
Em 1990, após a introdução dos testes sorológicos e melhor experiência com a doença, a mesma Sociedade modificou estes critérios, dispensando a provocação e a terceira biópsia na maioria dos pacientes. Haveria exceções quando o diagnóstico fosse estabelecido antes dos 2 anos de idade ou 
quando houvesse dúvida com relação ao diagnóstico inicial, como, por exemplo, falta evidente de resposta clínica à dieta sem glúten, não realização de biópsia inicial ou biópsia inadequada ou não típica da DC47.


205Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas
5 Fluxo para o dIagnóstICo da doEnça CElíaCa
Na evidência de sintomas ou sinais das formas clássicas e atípicas da DC e para indivíduos de risco, deve-se solicitar, simultaneamente, dosagem do anticorpo antitransglutaminase recombinante humana da classe 
IgA (TTG) e da imunoglobulina A (IgA). Se ambas se mostrarem normais, o acometimento dos indivíduos pela DC é pouco provável no momento. Entretanto, na forte suspeita de DC, deve-se encaminhar o paciente para Serviço de Referência em Gastroenterologia Pediátrica ou Clínica para melhor avaliação quanto à realização de biópsia de intestino delgado.
Em parente em primeiro grau acometido de DC, ou com diagnóstico de doença autoimune ou doença não autoimune relacionada à DC, deve-se repetir a dosagem do TTG no futuro. Se a dosagem do anticorpo antitransglutaminase (TTG) for anormal, o indivíduo deverá ser encaminhado a serviço de Clínica Médica, Gastroenterologia ou Pediatria com vistas à realização de biópsia do intestino delgado. Se TTG for normal, mas a dosagem de IgA estiver alterada, deve ser considerada a possibilidade de resultado falso-negativo pela presença de imunodeficiência primária, e o indivíduo deverá ser encaminhado a serviço de Clínica Médica, Gastroenterologia ou Pediatria com vistas à realização de biópsia do intestino delgado. Se o exame histopatológico for positivo para lesão clínica da mucosa intestinal da DC, confirma-se o diagnóstico da doença.
Por último, TTG anormal, IgA normal e biópsia de intestino delgado negativa excluem o diagnóstico de DC, e o resultado da dosagem de TTG deve ser considerado falso-positivo. Contudo, o exame histopatológico 
deve ser revisto e, se realmente for negativo, ou seja, se estiver ausente a lesão clássica da mucosa do intestino delgado, deve-se considerar o achado endoscópico como lesão em mosaico (acometimento em patchy) e indicar 
nova biópsia intestinal com a obtenção de múltiplos fragmentos. Se, novamente, o padrão histológico não for de DC, a existência da doença é pouco provável.


6 tratamEnto E prognóstICo
O tratamento da DC consiste em dieta sem glúten, devendo-se, portanto, excluir da alimentação tudo o que contenha trigo, centeio, cevada e aveia, por toda a vida.
Com a instituição de dieta totalmente sem glúten, há normalização da mucosa intestinal e das manifestações clínicas. Porém, no caso de diagnóstico tardio, pode haver alteração da permeabilidade da membrana intestinal por longo período de tempo e a absorção de macromoléculas poderá desencadear quadro de hipersensibilidade alimentar, resultando em manifestações alérgicas. Este quadro deve ser considerado quando o indivíduo não responde adequadamente à dieta sem glúten e apresenta negatividade nos exames sorológicos para DC. 
É necessário destacar que as deficiências nutricionais decorrentes da má-absorção dos macronutrientes e micronutrientes, por exemplo, deficiência de ferro, de ácido fólico, de vitamina B12 e de cálcio, devem ser 
diagnosticadas e tratadas. Assim, deve-se atentar para a necessidade de terapêutica medicamentosa adequada para correção destas deficiências.
O dano nas vilosidades da mucosa intestinal pode ocasionar deficiência na produção das dissacaridases na dependência do grau de seu acometimento. Por isso, deve-se verificar a intolerância temporária a lactose e sacarose, que reverte com a normalização das vilosidades.
Há relatos de uma série de manifestações não malignas associadas à DC, tais como osteoporose, esterilidade e distúrbios neurológicos e psiquiátricos. Dentre as doenças malignas, são relatadas associações com adenocarcinoma de intestino delgado, linfoma e carcinoma de esôfago e faringe. O risco das manifestações está associado com a inobservância à dieta isenta de glúten e ao diagnóstico tardio, como nos sintomas neurológicos.
Portanto,  justifica-se a prescrição de dieta totalmente isenta de glúten por toda a vida a todos os indivíduos com DC, independentemente das manifestações clínicas. A dieta deve ser rigorosa, pois transgressões 
sucessivas poderão desencadear um estado de refratariedade ao tratamento.
A dieta imposta é restritiva, difícil e permanente, ocasionando alterações na rotina dos indivíduos e de sua família. Devido ao caráter familiar da desordem, aproximadamente 10% dos parentes dos celíacos podem 
apresentar a mesma doença. 
Também enfatiza-se a necessidade da atenção multidisciplinar e multiprofissional aos indivíduos com DC, pois, além dos cuidados médicos, eles podem precisar de atendimento por profissionais de Nutrição, Psicologia 
e Serviço Social de forma individualizada e coletiva. 


206Doença Celíaca
 Doença Celíaca
7 rEgulação/ControlE/avalIação pElo gEstor
A regulação do acesso é um componente essencial para a organização da rede assistencial e garantia de atendimento aos pacientes. Facilita as ações de controle e avaliação, que incluem, entre outras, a manutenção atualizada do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o monitoramento da produção dos procedimentos (por exemplo, frequência apresentada  versus
autorizada, valores apresentados versus autorizados versus pagos) e, como verificação do atendimento, os resultados do teste de detecção e da biópsia duodenal e as consultas de acompanhamento. Ações de auditoria devem verificar  in loco, por exemplo, a existência e a observância da regulação do 
acesso assistencial, a compatibilidade da cobrança com os serviços executados, a abrangência e a integralidade assistenciais e o grau de satisfação dos pacientes.


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Consultores: Helena Pimentel, Lídia Ruth Marques Silveira, Maria Inez Pordeus Gadelha,

Maria Lúcia Barcellos Pereira e Paula Regla Vargas

Editores: Paulo Dornelles Picon, Maria Inez Pordeus Gadelha e Alberto Beltrame
Os autores declararam ausência de conflito de interesses.


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